domingo, 9 de março de 2008

Viagens à tasca

Regressamos aos habituais percursos tasqueiros para destacar uma já longínqua visita à baixa pombalina. Já não me recordo de quais as circunstâncias para tal visita. Provavelmente um qualquer jantar rotineiro no Bairro Alto para o qual decidi efectuar um pequeno pré-desvio. A colheita mostrou-se boa e como resultado lá andei eu, uma vez mais, a noite toda a promover as lojas do saquinho verde…
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As primeiras escolhas recaíram sobre dois EPs dos norte-americanos Animal Collective. Se «Prospect Hummer», edição que conta com a participação e auxílio especiais de Vashti Bunyan, data de 2005 e resulta da fusão dos ambientes experimentais e libertinos dos Animal Collective à folk tradicional e obscura de Bunyan; «People» sugere uma qualquer celebração, mais que merecida diga-se, a «Feels» (soberbo álbum de 2005). De facto, «Prospect Hummer» aproxima-se da tão solenizada fre(ak) folk, com algumas passagens a fazer-nos lembrar a harpa e as divagações acriançadas de Joanna Newsom; e «People» caracteriza-se mais por ser uma obra ao estilo pós-moderno dos Animal Collective. Se «Prospect Hummer», a canção, remete-nos para o universo das irmãs CocoRosie e do amigo Devendra Banhart; «People», o tema, é cumulativamente espacial e festivo, com efusivos «yeah», «yeah», «yeah» à mistura. Se o instrumental «Baleen Sample» sugere uma continuação de alguns dos temas de «Sung Tongs» (de 2004 e pré «Prospect Hummer»); «My Favorite Colors» são cento e onze segundos arrepiantes, mas naturais para Avey Tare e companhia. Enquanto «I Remember Learning How To Dive» se apresenta como uma autêntica composição clerical, enquadrando-se perfeitamente em qualquer cerimónia católica e com Bunyan a mostrar que ainda tem muito para dar; «Tikwid» é melodiosa e Avey Tare volta a maravilhar-nos com as suas criativas vocalizações. «It’s You» compacta tudo o que «Prospect Hummer» enuncia e a versão ao vivo de «People» é só mais um extra. Em suma, levei para casa mais trinta minutos, em oito gravações, dos Animal Collective que merecem toda a nossa atenção: se os primeiros quinze minutos se aventuram em terrenos dream freak free folk, na voz de Vashti Bunyan; os restantes quinze minutos são mais uma prova de qualidade das experiências sonoras dos Animal Collective. Registe-se, ainda, que brevemente será editado mais um EP dos Animal Collective, intitulado «Water Curses», e que nos dias 27 e 28 de Maio a banda nova-iorquina passa pelo Cinema Batalha (no Porto) e pelo Lux (em Lisboa), respectivamente.
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A segunda aposta recaiu sobre outro dos grandes registos de 2007: «Trees Outside the Academy», o segundo álbum a solo de Thurston Moore, guitarrista dos nova-iorquinos Sonic Youth. Se há uns anos atrás nos dissessem que Moore se aventuraria a editar um álbum pop acústico e baseado na estrutura clássica da canção, provavelmente ninguém acreditaria. Porém, o passado mais recente dos Sonic Youth tem-nos mostrado excelentes momentos pop. A aspereza da banda nova-iorquina pressente-se, mas são as melodias e as texturas pop que mais se evidenciam. Por isso, este «Trees Outside the Academy» é como que um descendente directo de «Rather Ripped», de 2006. Composto entre a eficácia da guitarra acústica de Thurston Moore, a elegância do violino de Samara Lubelski, as discretas mas infalíveis percussões de Steve Shelley (companheiro de Moore nos Sonic Youth) e pontuais manifestações da guitarra de J Mascis (dos Dinosaur Jr., em cujo estúdio o álbum foi gravado), «Trees Outside the Academy» é surpreendente e «user-friendly». Ouçam-se, por exemplo, a deliciosa «Honest James» que conta com a colaboração na voz de Christina Carter dos Charalambides; a sónica e melancólica «Fri/End»; a descontraída «American Coffin» que nos mostra os dotes de Moore ao piano; o espírito punk e acelerado em formato unplugged de «Wonderful Witches + Language Meanies»; a versão acústica da crespidão Sonic Youth em «Off Work»; a balada folk de «Never Day»; a intrigante visão grunge de Thurston Moore em «Frozen Gtr»; e a introspectiva «The Shape Is In A Trance». Dando continuação aos devaneios de Moore em «Thurston @ 13», apetece-me avisar: «What you’re about to hear is some of the finest Thurston Moore’s tunes!».
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Mudando, totalmente, de corrente musical e, igualmente, de continente, volto a destacar o francês Benjamin Biolay (BB) para apresentar «Trash Yéyé» (como prometido aquando das «viagens à tasca em período de férias»). Editado em 2007, «Trash Yéyé» é o quarto álbum de originais, em nome próprio, de BB. Depois da espantosa estreia em «Rose Kennedy» (2001), da não menos extraordinária sequela com o duplo álbum «Négatif» (2003) e do menos conseguido «À L’Origine» (2005), «Trash Yéyé» vem confirmar as qualidades de BB como compositor de excepção e oferecer alguns dos momentos pop mais lascivos de 2007. Compactando de uma forma coesa e sucinta as várias aventuras discográficas de BB, «Trash Yéyé» tem a rara proeza de combinar a chanson française de Serge Gainsbourg e Arthur H com as electrónicas francófonas que fizeram história em «Moon Safari» dos compatriotas AirDouloureux Dedans»); com momentos mais clássicos e paradoxalmente mais indieRegarder La Lumière» e «Cactus Concerto»); ensejos soturnos e à lá Nick CaveLa Garçonnière»); piscadelas ao dub embebidas em discretas movimentações reggaeLaisse Aboyer Les Chiens»); e exercícios mais «radio-friendly» («Dans La Merco Benz», «Qu’Est Ce Que Ça Peut Faire» e «Rendez-Vous Qui Sait»). Razões pelas quais BB continua a ser uma das estrelas maiores na minha colecção de discos. Menção final para as baladas «La Chambre D’Amis» e «Woodstock», a faixa escondida, que podiam perfeitamente surgir na banda sonora do belíssimo «Les Chansons D’Amour» (filme de Christophe Honoré). Ora cá está mais um nome interessante para uma passagem por palcos nacionais…
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Chegamos ao derradeiro desvio para falarmos do já extinto trio norte-americano de hip-hop cLOUDDEAD. Composto por Doseone (Adam Drucker), Why? (Yoni Wolf) e Odd Nosdam (David Madson), os cLOUDDEAD são hoje um caso de culto. Em cinco anos de actividade editaram dois álbuns («cLOUDDEAD» de 2001 e «Ten» de 2004) e quase duas mãos cheias de EPs. O seu desaparecimento prematuro em 2004 deixou «água na boca» a muito boa gente. Até então só tinha ouvido alguns minutos soltos da demência do colectivo. A noção que tinha era que produziam um som não muito distante dos conterrâneos Dilated Peoples, ou seja, ambientes sombrios e urbanos, nos quais os beats e as rimas desempenhavam o papel principal. Após a audição do debut «cLOUDDEAD» testemunhei um qualquer casamento entre um hip-hop sagaz e samples de cariz cinematográfico, revelando ambientes ficcionais que nos remetem inadvertidamente para tudo e mais alguma coisa («I Promise Never To Get Paint On My Glasses Again (1)» é um excelente exemplo disso mesmo). «cLOUDDEAD» é, assim, um disco de imagens, de beats, de momentos e ambientes. O já aqui discutido formato canção é ponto que em nada interessa aos três elementos da banda norte-americana. Os sons vão emanando e a magnetização é crescente. Fico à espera de encontrar «Ten» numa futura visita tasqueira...
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A despedida faz-se ao som de Benjamin Biolay, com «Dans La Merco Benz», o primeiro single extraído de «Trash Yéyé».

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